por CARLOS DAVISSARA
Acabo de ler A TRILOGIA DA MARGEM - O LIVRO-IMAGEM SEGUNDO SUZY LEE, ensaio no qual a premiada autora coreana relata o processo de criação de seus livros-imagem ESPELHO, ONDA e SOMBRA, obras que a consagraram como uma das grandes criadoras da atual Literatura Infantojuvenil mundial. O livro expõe de forma bem didática as concepções de Suzy Lee sobre o que é ou como deve ser um livro-imagem, além de trazer depoimentos muito interessantes sobre o impacto que seus livros têm causado nas crianças pelo mundo afora.
Desde quando iniciei minhas pesquisas sobre Literatura Infantojuvenil (na época, ainda era "infanto-juvenil", com hífen), tenho feito descobertas maravilhosas sobre as vertentes que ela pode assumir e, com certeza, A Trilogia da Margem me fez entender melhor a essência de uma dessas vertentes, que é a do livro-imagem. Com isso, alguns de meus conceitos e pré-conceitos mudaram - para melhor, ainda bem.
Sempre fui refém da palavra. Por mais que eu fosse um fã de quadrinhos ou admirasse o livro ilustrado, gêneros que trazem grande carga de expressividade narrativa em suas imagens, quando me deparava com obras sem texto, contando uma história apenas por suas ilustrações, ficava aquela sensação de que algo estava faltando.
Talvez essa seja uma necessidade do leitor adulto, a de encontrar uma história já pré-estabelecida em palavras, definidas numa ordem carregada de intenções, onde a imersão na narrativa torna-se mais passiva, sem exigir muitas responsabilidades criativas de quem lê.
Com o LIVRO-IMAGEM a mágica é diferente.
O livro-imagem, em geral, destina-se à criança. E a criança, que é um leitor não menos exigente do que qualquer adulto, está mais preparada para mergulhar nas infinitas ramificações que uma história narrada apenas por imagens oferece.
Em A Trilogia da Margem, Suzy Lee resume a ideia assim:
Os livros-imagem correm o risco de se tornar demasiado lógicos ou explanatórios quando recheados da ansiedade de que o leitor possa perder o fio da história sem a ajuda de palavras. Não haverá respiro se a preocupação for apenas tocar adiante a série de acontecimentos. O mais desafiador na criação de livros-imagem é ser capaz de conduzir, com delicadeza, os leitores e, ao mesmo tempo, abrir todas as possibilidades de diversas experiências de leitura. Um livro ilustrado bem-sucedido deixa espaço para o leitor imaginar; um livro ilustrado frustrante não deixa espaço nenhum e está inteiramente cheio de imagens de um artista sem imaginação.
(pág. 146)
Nesse trecho, fica clara a relação de respeito que há entre o livro-imagem (ou livro ilustrado) e o leitor. A inteligência de quem lê, sua capacidade criadora, seu poder imaginativo, tudo isso é respeitado e, mesmo, instigado quando se tem em mãos um livro-imagem de qualidade.
Ainda sobre a citação, gostaria de destacar o trecho: Não haverá respiro se a preocupação for apenas tocar adiante a série de acontecimentos. Como professor e pai, percebo que a muitas crianças falta essa paciência para “respirar” durante a leitura, de acompanhar a narrativa em todos os seus detalhes, de não haver pressa em se chegar ao fim. Apesar de ser algo natural em muitos leitores, já que no livro-imagem não existem palavras a serem decodificadas em forma de uma história, essa atitude acelerada impede a fruição aprofundada da obra. E o criador de um livro-imagem tem o importante papel de fisgar o leitor para uma vigília contemplativa, uma degustação vagarosa dos diversos sabores da história, uma ausculta minuciosa dos dizeres do livro, enfim, algo que substitua a afobação de virar as páginas e saber o que acontece por uma apreciação aberta dos "quês" que acontecem, das diversas leituras possíveis.
Outro ponto que me chamou muito a atenção em A Trilogia da Margem foi a abordagem apresentando o livro em sua dimensão de objeto e o quanto as características desse objeto interferem diretamente na recepção da obra pelo leitor.
Para refletir acerca disso, Suzy Lee expõe uma mensagem recebida de um livreiro, onde ele questiona a edição da obra Onda:
Estamos um pouco confusos com as páginas duplas, parece faltar algumas partes da criança e das gaivotas. É assim mesmo? Verificamos com o nosso fornecedor, com o distribuidor e com outra livraria e todos os exemplares são iguais a este. Será que não entendemos o sentido ou o impressor se equivocou? Foi um erro de impressão?
(pág. 4 e 5)
A imagem em questão é a seguinte:
E a pergunta que fica é mesmo a feita pelo livreiro: foi um erro de impressão? Confesso que quando li Onda pela primeira vez, também fiquei com essa sensação.
A questão é que Suzy Lee explorou ao extremo as margens desse objeto-livro e, na verdade, não é tão evidente, de início, perceber o recurso. O maravilhoso disso é que a curiosidade do leitor é instigada a tal ponto (como a do livreiro), que ele quer saber a qualquer custo qual o mistério por trás das partes das gaivotas e da menina que faltam.
O que Suzy Lee fez foi investigar um problema editorial antigo, que é o de como lidar com as margens centrais de um livro, a parte que fica presa pela encadernação, comumente chamada de “espinha”. O que se costuma fazer é evitar essa “espinha”, tirando da área as informações mais importantes da história. Ilustradores, por exemplo, ao lidarem com as páginas duplas, sabem que um risco que se corre é o de ter parte das ilustrações engolidas pela “espinha”. Enfim, esse é um problema estrutural do objeto-livro que, muitas vezes, compromete toda uma edição.
A genialidade de Suzy Lee foi a de encarar o problema de frente, enfrentá-lo, e não evitá-lo. O que para a grande maioria sempre foi um obstáculo, para a autora foi um desafio que, superado, tornou-se parte fundamental de sua obra.
Em Espelho, Onda e Sombra, a “espinha” do livro funciona como um portal entre dois mundos. Portanto, quando a menina de Onda aparece com parte de seu corpo “faltando”, o que acontece de fato é que essa parte está dentro do portal, transitando entre os dois mundos, e logo sairá do outro lado junto com todo o resto da menina para continuar sua aventura.
Lendo A Trilogia da Margem, percebi a importância de se permitir entrar também nesses portais que levam ao mundo da fantasia. Suzy Lee, com sensibilidade e apurada pesquisa artística, fez de sua trilogia uma celebração e um presente para aqueles que deixarem o leitor-criança que há dentro de si tomar as rédeas na relação com o objeto-livro.
Ler com alma de criança, essa é a chave.
E como a própria autora termina seu ensaio, também eu termino este breve artigo, respondendo à pergunta do livreiro sobre se o livro Onda veio com defeito.
Novamente, a imagem:
E a resposta de Suzy Lee é esta:
... isso não é um erro de impressão.
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Dados da obra
Título: A TRILOGIA DA MARGEM - A LIVRO-IMAGEM SEGUNDO SUZY LEE
Autora: Suzy Lee
Tradução: Cid Knipel
Editora: Cosac Naify
Ano de edição: 2012

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